Cruzamentos

quarta-feira, maio 16, 2007

Peep show

Hans Bellmer (1902-1975), La Poupée (detalhe), Paris, Éditions GLM, 1936, gravura (linóleo) sobre papel rosa, 16,7 x 12,8 cm

Sobre o conjunto de obras de Hans Bellmer sob a designação Die Puppe / La Poupée, ver, sobretudo, The Wandering Libido and the Hysterical Body, de Sue Taylor, para o site do Art Institute of Chicago.

Muita informação também no Centre Pompidou, em La Révolution Surréaliste (a propósito da exposição de 2002) e nos Dossiers Pédagogiques dedicados ao surrealismo.

Na "net", a mais completa coleccção de imagens que conheço sobre a multiforme boneca encontra-se em dolls of hans bellmer - não deixar de visitar os "links", para um relacionamento com práticas contemporâneas nem sempre "artísticas" (mais "links" sobre o tema num "blog" português). Outro material fotográfico de Bellmer no International Center of Photography.

Uma série de "links" relativos a Bellmer em A vocabulary of culture.

Sobre o conceito freudiano de "estranha familiaridade" (Das Unheilmliche), ver La Révolution Surréaliste e o site La Psychanalyse. O texto integral de The Uncanny (Das Unheilmliche) está disponível em inglês. Várias obras de Sigmund Freud encontram-se em Les Classiques des Sciences Sociales, em tradução francesa.

O conto (1814) de E. T. A. Hoffmann que está na origem do texto de Freud e entre as referências geradoras da(s) boneca(s) de Bellmer, está traduzido em inglês, como The Sandman.

Hans Bellmer, fotografia de uma das versões da sua boneca

A boneca, só com os pés vestidos, jaz no chão e é olhada de cima para baixo, torcida e nua, sexo no foco, olhada pelo homem fotógrafo, em pé, vertical. As outras nádegas deste monstro único, mutante, totalmente instrumentalizado pela sexualidade, são expostas pelo espelho. Espelho terrível que impede a fuga para a sombra e o esquecimento, forçando este corpo-artefacto a exibir-se, outra vez, devolvendo-o ao nosso olhar - e tornando o acto de olhar iniludivelmente visível.


Marcel Duchamp, Etant Donnés (detalhe), 1946-1966, Philadelphia Museum of Art

A mulher nua, indecisa entre a morte e a vida (ergue o braço), o sórdido e o heróico (a luz no braço erguido), deita-se, ou foi despejada, numa paisagem bucólica, retalhada pela visão, por natureza fragmentária, que se centra no seu sexo. Espreitamos pela fissura da porta e vemos um exterior. Espreitar a mulher, espreitar para dentro, ver através de (como na perspectiva): das viscerais noivas tetradimensionais de 1912 a este corpo no chão. Sexualidade progressivamente mais óbvia, mais crua, mais sórdida.


Alfred Hitchcock, Frenzy (fotograma), 1972

A mulher nua foi despejada no sujíssimo Tamisa, que o discurso da ordem promete limpar. A água não é uma cascata ao fundo. Da indizível violação de Blackmail (1929), elidida por foras-de-campo vários, para a mulher violada, nua, morta. Sexualidade progressivamente mais óbvia, mais crua, mais sórdida.


Alfred Hitchcock, Psycho (fotograma), 1960. Ver pormenor* abaixo

A parede revela Norman e a sua relação com Marion: ele é um predador e o contentor habitado pelo fantasma da Mãe, como um mocho empalhado; Marion é a vítima da predação e um animal a retalhar pelo taxidermista, este recepcionista involuntário do vestíbulo entre a vida e a morte - e é, Marion, o objecto do desejo, a ser violado na sua privacidade sem conhecimento, como as mulheres nuas que homens devassam nos quadros. A pintura, a Arte, esconde e revela, "sublima", mas sem conseguir apagar as marcas de uma regressão às pulsões do inconsciente.


Alfred Hitchcock, Psycho (fotograma), 1960

O quadro é tirado da parede,


Alessandro Allori, Susana e os Velhos, 1561, óleo sobre tela, 202 x 117 cm, Musée Magnin, Dijon

uma qualquer (não esta, de Alessandro Allori) "Susana" atormentada pelos seus "velhos" (entre a violência e o negócio), a ser redimida pela virtude absoluta,


Alfred Hitchcock, Psycho (fotograma), 1960

O quadro ausente revela, agora sem transposição, tudo o que fora, até aí, recalcado. Buraco na parede, buraco na porta.


Alfred Hitchcock, Psycho (fotograma), 1960

Para espreitar


Alfred Hitchcock, Psycho (fotograma), 1960

o inconfessável,


Alfred Hitchcock, Psycho (fotograma - pormenor*), 1960

transposto, pela arte, para a esfera da ordem, do "alto", da moral. Nudez e pudor. Desejo e negócio.


Alfred Hitchcock, Psycho (fotograma), 1960

O buraco da parede já não transpõe: anuncia o buraco terrível do ralo da banheira que irá escoar a vida de Marion para o vazio, onde o nosso olhar não a pode mais seguir. Contracampo ontológico do buraco na parede, através do (como na perspectiva) qual o olho via: vazio absoluto, sem luz, sem visão, sem existência. Buraco na horizontalidade do fundo da banheira (conduzindo a um fundo mais fundo), visto do alto vertical da câmara de filmar.


Alfred Hitchcock, Psycho (fotograma), 1960

O buraco devolve-nos o olho: mas não o olhar. Olho morto.


Alfred Hitchcock, Psycho (fotograma), 1960

O olho vertical substitui o ralo horizontal, assim como o eixo vertical de visão é substituído pelo eixo horizontal, junto ao chão - baixo, "baixa" matéria, dejecto, lixo a limpar pelo obsessivo e cauteloso Norman. A câmara não pode senão afastar-se. Não há caminho redentor. O regresso do automóvel de Marion, no último plano do filme, não recupera nada, não repõe nada: é o regresso de um cadáver. Lixo. O lixo do que fora uma mulher em busca de redenção, do que fora juventude, do que fora riqueza (e crime: o dinheiro roubado por Marion).


Sobre o conjunto da obra de Marcel Duchamp, veja-se o divertido e informativo site Making Sense of Marcel Duchamp. Sobre Étant Donnés, consultem-se os artigos da tout-fait, Case Open and/or Unsolved: Étant Donnés, the Black Dahlia Murder, and Marcel Duchamp’s Life of Crime e Marcel Duchamp - Étant donnés: The Deconstructed Painting e veja-se uma reconstituição animada da obra no "site" Freshwidow. Sobre o Psycho, de Hitchcock, poderá recuperar-se um comentário meu no "blog" do curso A Arte Moderna.

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2 Comments:

  • Penso que o filme está todo no Youtube por partes. É esta a banda sonora do DVD?

    http://www.youtube.com/watch?v=lDXgcBQVJCw&mode=related&search=

    By Blogger HRC, at 17/5/07 09:48  

  • Confundiu-me com o filme: creio que se refere ao "Homem da Máquina de Filmar", que começámos a ver na aula de ontem. A banda sonora do exemplo que refere no YouTube é da Cinematic Orchestra, não é nenhuma das referidas ontem: a da minha cópia é da Alloy Orchestra - a outra mencionada é de Michael Nyman.

    By Blogger otipodashistórias, at 17/5/07 12:18  

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