Cruzamentos

quinta-feira, maio 18, 2006

Malevich em atraso: textos

Auroch pintado na "Rotunda dos Touros", Lascaux

A arte naturalista é uma ideia de selvagem: o desejo de reproduzir o que ele vê e não de criar uma forma nova (pág. 183).



Edouard Manet (1832-1883), Mlle. Victorine Meurent Mascarada de Espada, 1862, óleo sobre tela, The Metropolitan Museum of Art, New York

Os Académicos realistas são os últimos descendentes do selvagem (pág. 186).



Edouard Manet (1832-1883), Olympia, 1863, óleo sobre tela, 1,30 m x 1,90 m, Musee d'Orsay, Paris

Aqueles que seguem o seu tempo são mais altos, maiores, mais importantes. O realismo do século XIX é muito maior que as formas ideais das emoções estéticas sob o Renascimento e a Grécia. Os artistas [clássicos] estavam oprimidos pelo gosto estético (pág. 182).



Alexander Adriaenssen (1587-1661), Natureza Morta com Peixe, óleo sobre painel de carvalho, 55 x 75,6 cm, Groeninge Museum, Bruges

Reproduzir os objectos e recantos favoritos da natureza é agir como um ladrão que contemplasse com admiração os seus pés algemados (pág. 180).
Querendo reproduzir a vida da forma no quadro, apenas se reproduzia qualquer coisa morta. O vivo era reduzido à imobilidade, ao estado da morte
(pág. 185).



Kazimir Malevich (1878 - 1935), Suprematismo, 1917-1918. Oil on canvas. 106 x 70.5 cm. Stedelijk Museum, Amsterdam

Criar significa viver, forjar eternamente coisas novas (pág. 184).
Não mais considerar tudo o que existe na natureza como coisas e formas reais, mas como um material na massa do qual é preciso fazer formas que não têm nada a ver com o modelo
(pág. 185).
O mais precioso da criação pictórica são a cor e a textura; elas constituem a essência da pintura que o assunto sempre assassinou. É preciso dar às formas vida e o direito à existência individual
(pág. 185).



Charles Rennie Mackintosh, "Hill House Chair", 1902/3

A criação utilitária tem uma vocação. A criação intuitiva não tem vocação utilitária (…). A forma intuitiva deve sair do nada. Tal como a razão criou a partir do nada coisas destinadas ao uso quotidiano e as aperfeiçoa. Eis porque as formas da razão utilitária são superiores a qualquer representação oferecida pelos quadros. Superiores porque vivas, porque saídas da matéria a que foi dado novo aspecto para uma vida nova (pág. 192).



Wladimir Tatlin, Letatlin, 1929–1932

Seguindo as formas dos aeroplanos, dos automóveis, nós estaremos constantemente na esteira das formas da vida técnica, novas e abandonadas... Seguindo a forma das coisas, não podemos dedicar-nos ao fim pictural em si mesmo, à criação directa (pág. 189).



Richard Mutt (Marcel Duchamp (1887-1968)), Fountain, 1917. Fotografia de Alfred Stieglitz (1864-1946) para a revista Blind Man nº 2 (pág. 4)

Distribuir o mobiliário numa sala não é ainda um processo de criação (…). Pôr um samovar sobre a mesa será também criação? (pág. 184)



Mikhail Larionov, Raionismo Vermelho, 1913, aguarela sobre papel, 26,3 x 36,4 cm, Colecção Merzinger, Suíça

Para a nova cultura artística, as coisas evaporaram-se como em fumo e a arte vai em direcção ao fim em si, à criação, em direcção ao domínio das formas da natureza (pág. 180).



Wassily Kandinsky (1866-1944), Mit dem schwarzen Bogen / Com o Arco Negro, 1912, óleo sobre tela, 189 x 198 cm, Centre Georges Pompidou, Paris

Hoje em dia, o pintor tem de saber o que se passa no seu quadro e porquê. Antigamente, ele sofria a influência deste ou daquele estado de espírito (…). E acabava por imputar os seus desejos à vontade intuitiva. Em consequência, o sentimento intuitivo não se exprimia com clareza (pp. 192-93).



Kazimir Malevich (1878 - 1935), Quadrilátero Vermelho. Realismo Visual de uma Camponesa em duas dimensões, 1915, óleo sobre tela, 53 x 53 cm, Museu Russo, St. Petersburg

As formas sairão das massas pictóricas, isto é, hão-de surgir como surgem as formas utilitárias. Essas formas não serão a repetição das coisas que vivem na vida, elas serão coisa viva. Uma superfície-plano colorida é uma forma viva e real. (...) As formas do suprematismo, ou novo realismo pictórico, provam que as formas encontradas pela razão intuitiva foram construídas a partir do nada (pp. 193-94).



Kazimir Malevich (1878 - 1935), Quadrilátero Negro, [1913] 1923-29, óleo sobre tela, 106.2 x 106.5 cm, State Russian Museum, St. Petersburg

Metamorfoseei-me em zero das formas, cheguei ao que está para lá do zero, à criação, quer dizer ao suprematismo, novo realismo pictórico, criação não-objectiva. O suprematismo é o princípio de uma nova civilização. O selvagem foi vencido, como o macaco foi vencido (pág. 198).
O quadrado não é uma forma inconsciente. É a criação da razão intuitiva. É a face da nova arte
(pág. 198).



Kazimir Malevich (1878 - 1935), Suprematismo, c. 1915 (?), óleo sobre contraplacado, 71 x 45 cm, Museu Russo, St. Petersburg

Até hoje, só existia o realismo das coisas, mas não o das unidades pictóricas, das cores construídas de maneira a não dependerem nem da forma, nem da cor, nem da sua situação por relação com outra unidade. Cada forma é livre e individual. Cada forma é um mundo (pág. 198).



Jackson Pollock ((1912-56) fotografado a trabalhar, por Hans Namuth, em 1950

A arte é a capacidade de criar uma construção que não provém das relações entre as formas e a cor, que não é fundada sobre o gosto estético que preconiza o bonitinho da composição, mas que é construída sobre o peso, a velocidade e a direcção do movimento. É preciso dar às formas o direito à existência individual (…). Nós somos o coração vivo da natureza (…). Nós somos o seu cérebro vivo (pág. 195).

Nós, os suprematistas, abrimo-vos o caminho. Andai depressa! Porque amanhã já não ireis reconhecer-nos. Moscovo 1915 (pág. 201).


(Excertos retirados de Do Cubismo e do Futurismo ao Suprematismo (…), segundo a 3ª edição, Moscovo, 1916 in Kazimir Malevitch, Écrits, Paris, Ed. Lebovici, 1986, prefácio, selecção e tradução para francês de A. Nakov (cota Ar.Co 7 MAL 01). Os excertos foram reordenados, traduzidos, sujeitos a uma nova lógica de pontuação e ilustrados. É a ilustração que comenta o texto. Em diálogo)

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1 Comments:

  • engraçado também verificar a influência do Taoísmo sobre Malevitch, parece que ele teve acesso a alguns escritos orientais. mas basta analisar 3 quadrinhos apenas para verificar a sua enorme influência na arte do século XX (exº: para mim, o quadrado negro é um cubo planificado, com ligações directas ao cubo da Eva Hesse de 1968, à peça do Richard Serra de 1969, aos cubos do Sol LeWitt, ao White Cube, a Damien Hirst 1991 e às pinturas do Frank Stella 1959/60, já para não falar na relação do "zero das formas" com a esculptopintura +/- do Max Ernst e a fase +/- do Mondrian). O que o Carl Andre "roubou" ao Brancusi também é uma coisa impressionante (sorriso). basta comparar "endless column" (1930-33) do segundo com "last ladder" e "cedar piece" (1959) do primeiro. por exemplo, vejo ligações directas entre o trapézio vermelho de Malevitch, o monumento para o infinito de Brancusi (as peças até são laranja-avermelhadas e tudo), a escultura do Carl Andre e, mais recentemente, a do Manfred Pernice. mas isto sou só eu a divagar. também me pergunto às vezes se Malevitch terá conhecido os filmes e patentes dos irmãos Skladonowsky (de origem polaca, tal como ele, que até fizeram um tour pela Europa Central e filmaram a dança da Annabelle e tudo - acho muito mais piada aos filmes deles do que aos dos Lumière). parece-me às vezes que, mesmo que Malevitch tenha sido obrigado a subordinar a sua pintura ao "gosto oficial", o seu sentido de humor ucraniano teria de engendrar alguma subtileza adicional nessas pinturas. pergunto-me se o segredo não estará naquelas lâminas amarela, azul e vermelha de cuja emulsão os Skladonowsky detinham a patente - e o que aconteceria aos quadros tardios de Malevitch impressos nessas placas com a emulsão (cada parte na cor respectiva). especulações que, se calhar, não levam a lado nenhum, mas com as quais gosto de entreter-me...

    By Anonymous alexandra_pereira, at 7/4/11 16:04  

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