Publicidade de uma
exposição nova-iorquina a inaugurar amanhã.
Um Marcel Duchamp a habitar Nova Iorque (a Grande Guerra começara em 1914 e terminaria em 1918), celebrizado pelo "
Armory Show" de 1913, foi um dos fundadores da Society of Independent Artists, émulo americano da francesa
Societé des Artistes Indépendants (a mesma que levantara obstáculos à exposição do
Nu Descendant un Escalier, em Março de 1912), fundada em 1884.
Quando a opinião pública do presente se enerva com a arte contemporânea, considerando arrogante e ditatorial a possibilidade de propor qualquer objecto, imagem ou acção como "Arte", esquece ou ignora que isso acontece pelos motivos contrários aos que geram a irritação: hoje em dia, nenhuma entidade define o que é ou não a tal "Arte". A oitocentista Societé des Artistes surgiu da situação oposta: era a Academia que dizia quem era artista e o que era "Arte", e fazia-o periodicamente, aceitando ou recusando as obras que estariam expostas no anual "Salon". Um júri fazia a escolha. A Societé des Artistes quis furar essa censura prévia: qualquer sócio podia expor (em quantidade limitada, no entanto) aquilo que quisesse. O público decidiria.
A Society americana pretendeu fazer o mesmo: quem quisesse tornar-se sócio pagava 6 dólares e ganhava o direito de expor (com limitação de número) o que quisesse. Daqui, a
queixa do Sr. Richard Mutt (ou de alguém tomando a defesa da sua causa), em
1917, na revista
The Blind Man: "They say any artist who pays six dollars may exhibit. Mr. Richard Mutt sent in a fountain. Without discussion, this object disappeared and was never exhibited".
O Sr. Richard Mutt tinha adquirido um urinol, provavelmente da empresa
J. L. Mott Ironworks, e enviara-o, para exposição, à Society of Independent Artists, de que era sócio. A peça foi excluída por decisão maioritária dos directores da sociedade. Marcel Duchamp demitir-se-ia. Rebentava a polémica.
Mutt e Duchamp parecem ter sido, no entanto, a mesma pessoa. Mas foi Marcel que escreveu à sua irmã Suzanne: "Uma das minhas amigas, sob um pseudónimo masculino, Richard Mutt, enviou um urinol como escultura". Mesmo a identidade sexual é posta em causa: o senhor ou a senhora Mutt? Em 1920 surgirá Rrose Sèlavy, outro heterónimo de Marcel - uma senhora que o amigo Man Ray fotografará para o rótulo de um
frasco de perfume. Arte, escultura, instituições, processos, execução, originalidade, autoria: tudo claramente em questão.
O que sabemos daquela que é, hoje, uma das mais influentes peças da cultura artística do século XX é muito pouco. Sabemos que não é o primeiro "ready-made". A "Roda de Bicicleta" é de 1913. "Ready-made", uma arte "já pronta", um objecto pré-existente a que é alterado o estatuto ao ser proposto como obra de arte. A designação também é um "ready-made": vem da venda de roupa por catálogo, roupa "pronto-a-vestir", como dizemos hoje, por influência francesa ("prêt-à-porter"), oposto da roupa "tailor made", feita, à medida, por um alfaiate. A
Fountain desapareceu: dela só restam fotografias - e a mais famosa, a de Alfred Stieglitz, publicada em
The Blind Man, consiste numa encenação que não sabemos a quem atribuir. Duchamp, sabemo-lo através de outra fotografia, tinha o urinol pendurado no vão de uma das portas do seu estúdio nova-iorquino da Rua 67. Na
Fountain até temos sorte: já a "Roda de Bicicleta" é, sobretudo, conhecida pela fotografia de uma terceira versão de
1951 - as diferenças entre versões são grandes e têm vindo a gerar relevantes
discussões.
A história de
Fountain é conhecida, sobretudo, devido ao trabalho de investigação histórica de William Camfield, de quem se poderá consultar, na biblioteca ("CD", isto é, "Centro de Documentação") do Ar.Co, "Marcel Duchamp's
Fountain: Aesthetic Object, Icon, or Anti-Art?" in Thierry de Duve (org.),
The Definitively Unfinished Marcel Duchamp, Cambridge-London, MIT Press, s.d. [1991].
Thierry de Duve faz um bom resumo dela em
Voici, 100 Ans d'Art Contemporain, Paris, Ludion-Flammarion, s.d., pp. 28-29, obra também existente na biblioteca do Ar.Co.
"Online" existem excelentes recursos:
Especificamente sobre
Fountain poder-se-à consultar o artigo respectivo em
Unmaking the Museum: Marcel Duchamp's Readymades in Context, de Kristina Seekamp, e, no
Art Science Research Laboratory, o muito esclarecedor texto de Michael Betacourt,
The Richard Mutt Case: Looking for Marcel Duchamp's Fountain.
De um ponto de vista mais geral, o site
Making Sense of Marcel Duchamp é uma viagem divertida e séria pela obra de Marcel Duchamp.
Existe uma
Marcel Duchamp World Community, com muita informação e que inclui uma excelente revista cibernética, inteiramente dedicada ao tema, a
Tout-Fait.
Principalmente para os francófonos, a z u m b a w e b d e s i g n dedica um site a
Marcel Duchamp en Français sur le Web.
A Columbia University (Nova Iorque) disponibiliza alguns excertos de
textos e conversas de Duchamp.
Os "links" do texto deste post contêm mais informação: explorem-nos. Em breve, colocarei novos "links" no blog, onde se deverá, também, buscar
mais Duchamp.
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